Entendendo a história do dinheiro
O dinheiro é injustamente culpado por ser o mal da sociedade. No entanto, tendo a discordar, porque o dinheiro foi uma das maiores criações da história da humanidade. Ele permitiu a humanidade sair de uma sociedade primitiva de escambo, e chegar uma sociedade extremamente complexa e produtiva. A história do dinheiro é fascinante.
Atualmente é possível digitalizar seu dinheiro e enviar para qualquer lugar do mundo. Entretanto, nem sempre foi assim, o dinheiro assumiu diversas formas até chegar ao formato que somos habituados hoje. No post de hoje, vamos entender um pouco desta complexa evolução.
Escambo
Ao longo da história da humanidade, as pessoas passaram a cooperar em uma divisão de trabalho para produzir bens. Com o passar do tempo, o processo produtivo passou a se tornar cada vez mais complexo. As pessoas se especializam em tarefas cada vez mais específicas, até que começam a surgir os diferentes ofícios e profissões.
Como consequência disso, passaram a surgir bens com propósitos e ordem de complexidade diferentes. Diante deste fato, a troca direta entre duas pessoas (escambo) passou a se tornar cada vez mais difícil, a ponto de se tornar impraticável.
Para facilitar, podemos recorrer a um exemplo simples: suponha que em uma economia existam dois bens (sapatos e agasalhos). Duas pessoas podem estimar uma taxa de câmbio e trocar diretamente seus 2 pares sapatos por 1 agasalho. Esta é uma troca simples e direta, pois envolve dois bens e não houve nenhum meio de troca a não ser os próprios bens.
Agora imagine que essa economia passe a se tornar mais complexa e que agora a mesma tenha 3 bens (sapatos, agasalhos e carne). Suponha que duas pessoas desejam realizar uma transação simples: uma possui sapatos e deseja agasalho, a outra parte possui agasalho mas deseja carne, desta forma, a troca direta não acontecerá.
Será necessário encontrar alguém que deseje trocar carnes por sapatos, depois disso será necessário trocar carne por agasalho. Diante disso, adicione mais bens e mais pessoas dentro do contexto econômico, as trocas diretas ficariam impossíveis de ocorrer.
Surge o dinheiro
Dentro desse contexto surge o meio de troca, que passa a ser utilizado como dinheiro. Alguns bens são mais negociáveis dentro de uma economia do que outros bens. Por exemplo, o trigo é mais negociável do que um instrumento de astronomia, assim como o couro é mais negociado do que um arado.
Estes bens são escolhidos gradativamente pela sociedade, através do mercado. O bem escolhido como dinheiro deve ser aquele que mais facilita a troca indireta entre duas pessoas. Inicialmente foi escolhido o trigo, no entanto, algumas sociedades chegaram a usar carne, couro e sal como meio de troca.
A sociedade foi selecionando os melhores bens para servir como meio de troca, até chegar nos metais preciosos como Ouro, Prata e Bronze.
As características que todo bom meio de troca deve ter é: facilidade de trocar, fácil de transportar, escasso, difícil de falsificar, ter uma boa durabilidade e ser homogêneo. Os metais preciosos preenchiam todas estas características quase à perfeição.
Então por volta do século VII a.C, começam a ser cunhadas, de forma privada, as primeiras moedas metálicas. Logo depois, os governos passaram a cunhar suas próprias moedas, obrigando sua utilização pelos seus cidadãos. O dinheiro, portanto, passava a assumir a forma como conhecemos hoje, de moedas metálicas.
Moeda metálica do Império Romano.
Um milagre econômico
Com o surgimento das moedas metálicas, as trocas indiretas ficam mais fáceis de ocorrer, permitindo que a economia se desenvolva. Com uma moeda boa, a divisão de trabalho se torna mais evidente. As pessoas se especializam cada vez mais nas tarefas e a produtividade do trabalho aumenta em um nível nunca antes visto.
Antigamente, as pessoas deveriam produzir o que desejavam consumir, o que demandava bastante tempo. Além disso, a produtividade era muito baixa, ou seja, poucos bens eram produzidos na sociedade. O dinheiro, portanto, foi um verdadeiro milagre, porque possibilitou uma maior prosperidade econômica.
As pessoas podem se especializam em uma profissão, aumentando a produtividade de seu trabalho. Agora elas podem vender seus produtos no mercado, adquirir suas moedas metálicas e trocá-las por uma centena de outros produtos disponíveis para a compra.
Limitação das moedas metálicas
As moedas de metais preciosos são muito valiosas, e por conta disso, surgiu a preocupação com a segurança. Negociar grandes quantidades de ouro passava a ser perigoso e cada vez mais impraticável. Um mercador com uma alta quantia de moedas de ouro se tornaria um alvo fácil para ladrões, por exemplo.
Além disso, carregar grandes quantias de ouro se tornava um fardo pesado e custoso, o que dificulta a mobilidade. Isso impossibilitava o envio de uma grande quantia de ouro para qualquer lugar do mundo, inflexibilizando o fluxo de dinheiro internacional.
Diante destas deficiências das moedas metálicas, começaram a surgir as casas de custódia. Elas basicamente eram um lugar onde se depositava o ouro em troca de um certificado que era uma espécie de “vale ouro”. Este certificado ficou conhecido como moeda-papel, que agora poderia ser utilizado em qualquer transação.
Reservas fracionárias
As casas de custódia começaram a perceber que nem todas as pessoas sacavam todo o seu ouro ao mesmo tempo. Diante deste fato, as instituições começaram a emitir quantias de certificados além do que tinham em estocado em ouro. Os novos certificados sem lastro eram emprestados para outras pessoas, que pagariam juros às casas de custódia. Este mecanismo é conhecido como reserva fracionária, que é praticado até hoje.
Na reserva fracionária atual, os bancos emprestam ou aplicam no mercado financeiro uma quantia de dinheiro maior do que está depositada neles. Desta forma, se todas as pessoas corressem para sacar o seu dinheiro ao mesmo tempo, a maioria dos bancos iria declarar falência no mesmo dia, porque nem todas as pessoas conseguiriam resgatar seu dinheiro.
As casas de custódia evoluíram para o atual sistema bancário, que agora passava a custodiar ouro. Os bancos grandes passaram a incorporar os bancos menores por meio da competição bancária. Além disso, os bancos menores viam nos grandes bancos uma forma de garantir maior liquidez para o sistema.
A partir deste ponto, começam a surgir os primeiros bancos centrais, sendo o Banco da Inglaterra o primeiro deles. Em 1919, nos EUA surge o FED (Federal Reserve) por meio de uma sociedade anônima. Toda e qualquer emissão de moeda privada passa a se tornar ilegal e impraticável.
O lastro é perdido
Os bancos centrais agora detém o monopólio da emissão de moeda em seus respectivos países. Por meio de decretos governamentais de confisco, ou de serviços que ofereciam a custódia direta, os bancos centrais ficaram com a custódia de grande parte do ouro da população.
As moedas ainda eram lastreadas em ouro e prata, de forma que um cidadão poderia solicitar o resgate a qualquer momento. Ou seja, um dólar ainda valeria o equivalente a x gramas de ouro ou prata no momento do resgate.
Imagem de um dólar resgatável em ouro
Através da maior prática de reserva fracionária, a conexão da moeda com os metais preciosos se torna cada vez mais efêmera. A ligação é rompida definitvamente com fim do Acordo de Bretton Woods, nos anos 70. Foi uma saída encontrada pelo presidente dos EUA, Richard Nixon, para evitar a fuga de ouro para a União Soviética.
A moeda fiduciária
A ligação com o Ouro se perde completamente, surgindo assim as “moedas fiduciárias”. As moedas fiduciárias não possuem nenhum tipo de lastro. Isto é, seu valor está baseado na confiança da população e investidores em relação ao governo emissor.
Quando as pessoas perdem a confiança nas instituições do governo, a moeda do país perde grande parte do seu valor. Para observar estes acontecimentos, não é necessário ir muito longe. A moeda Venezuelana, o Bolívar, já vale menos do que a moeda do jogo eletrônico World of Warcraft. No Zimbábue já existem notas de 100 trilhões de Dólares Zimbábueanos para comprar uma dúzia de ovos.
A retirada do lastro serviu como incentivo para os bancos centrais e privados criarem dinheiro indefinidamente. O lastro em ouro e prata serviam como disciplinadores e limitadores para o aumento da oferta monetária. Diante disso, os governos passaram a imprimir mais dinheiro do que nunca. Abaixo segue o exemplo da oferta monetária Venezuelana.
Os governos definem através da lei o que deve ser utilizado como meio de troca dentro da economia. Por lei as pessoas são obrigadas a expressarem seus contratos e contabilidades em termos da moeda corrente definida pelo governo.
Como dito anteriormente, a moeda atual possui curso forçado pelo poder legislativo do governo. No Brasil, por exemplo, é proibido aceitar em estabelecimentos outras moedas que não Real. Isso faz com que as pessoas nunca deixem de utilizar a moeda por pior que ela seja.
Modernização do sistema financeiro
O sistema financeiro se modernizou com o surgimento da internet. Como consequência, o dinheiro passou a ser representado também por dígitos na tela de um computador. Os bancos dispõem de sistemas de internet banking, que permitem as pessoas realizar pagamentos e transações globais sem precisarem sair de casa.
Além disso, o mercado de crédito se torna extremamente mais acessível com o surgimento dos cartões de crédito. As pessoas podem solicitar empréstimos e receber o dinheiro ainda no mesmo dia. Com os cartões, as pessoas podem realizar compras sem necessariamente possuir dinheiro naquele momento.
No entanto, a expansão do mercado de crédito aumentou o nível de endividamento das pessoas, empresas e governos. As consequências da expansão de crédito sem limites foram encaradas na crise financeira de 2008, onde os Estados Unidos passaram por uma das maiores recessões de sua história.
Bitcoin
No auge da crise financeira de 2008, Satoshi Nakamoto, em seu White Paper, propõe um sistema de dinhero digital sem a necessidade de confiança em uma instituição financeira: O Bitcoin. Naquele momento, ele reunia todas as características que o tornava a antítese do sistema financeiro vigente.
Afinal, o Bitcoin é um dinheiro descentralizado, sem intermediários financeiros, extremamente escasso, que oferece maior privacidade nas transações e não é controlado por uma pessoa ou entidade central. Além disso, ele é um ativo inconfiscável, que o torna completamente descolado do mercado financeiro e de decisões políticas como confisco de ouro e poupança.
O Bitcoin possui lastro
O Bitcoin, tal como o ouro, não possui lastro em algum bem físico. Seu valor não é garantido por uma entidade central ou governo. Seu lastro é justamente suas características: um bem descentralizado, fácil de trocar, genuinamente escasso, inconfiscável, seguro e infalsificável.
Além disso, ele concerta um problema do ouro, que fez com tenha sido necessária a sua custódia: o problema de mobilidade. Portanto, o Bitcoin não precisa de uma casa de custódia ou um banco. O detentor do Bitcoin pode ser o seu próprio banco, ou seja, dono da sua própria riqueza.
Lá e de volta outra vez?
Os estudos sobre dinheiro ficaram em um segundo plano por muitos anos. Acreditava-se que sabíamos tudo o que era necessário sobre suas teorias. No entanto, nós economistas tendemos a possuir uma certa arrogância involuntária. Volta e meia surgem novos fatos que desafiam nossos conhecimentos, sendo o surgimento das criptomoedas um deles.
Particularmente, somos privilegiados testemunhar o surgimento deste novo ecossistema. Temos a chance de reviver e colocar à prova todas aquelas teorias econômicas formuladas séculos atrás. O monopólio estatal sobre a moeda fez com que os economistas acharem que qualquer debate já estava fechado e definido.
Definitivamente esquecemos ou sequer pensamos em uma economia com moedas concorrentes tendo o seu valor definido no livre mercado, como um bem qualquer. Não pensamos sequer na possibilidade de possuir um dinheiro o qual podemos escolher o seu destino. Isto é fantástico de se presenciar.
As criptomoedas são um desafio para a economia. É papel dos economistas estudá-las com afinco, porque elas representam uma ruptura com um sistema estabelecido há séculos. Diferente de revoluções, as criptomoedas seguem um caminho natural, lento e coeso de aprendizado. Quando menos percebermos, estaremos diante de um novo sistema financeiro.